Cartas

Carta 44

novembro | 2025

1. Dívida, inflação e produtividade: reflexões sobre o futuro

Na maior parte do mundo, os governos têm se endividado de forma acelerada nas últimas duas décadas, seja para financiar políticas sociais, custear despesas militares ou para estimular a economia e proteger o setor privado em momentos críticos. Em todo caso, o endividamento público se torna um desafio maior a cada ano e seus efeitos, ainda que nem sempre claros no curto prazo, devem ser tratados com seriedade.

Fonte: World Economic Outlook (FMI), Turim

O estoque global de dívida pública, que já havia se elevado de forma substancial a partir da Grande Crise Financeira (2008), acelerou ainda mais após a pandemia (2020), não somente pelo esforço fiscal sem precedentes em diversas economias, mas também pela elevação das taxas de juros, que levaram a um aumento não desprezível do custo de rolagem dos títulos públicos. As estimativas mais recentes do Fundo Monetário Internacional (FMI) preveem que a dívida pública deve ultrapassar 100% do PIB mundial até 2029, o maior nível desde o pós-guerra (1948). Cabe ressaltar que, historicamente, essas estimativas subestimaram o crescimento efetivo da dívida.

Nesta carta, abordamos as funções da política fiscal, os principais desafios impostos aos governos na atualidade e os caminhos possíveis para ajuste de rota, considerando seus efeitos agregados e distributivos sobre a economia e o bem-estar da população, além das implicações para mercados e a gestão de investimentos. Para investidores e gestores de patrimônio, compreender a dinâmica da dívida pública é essencial, pois ela influencia diretamente os juros, a inflação e a precificação dos ativos globais.

Os benefícios do endividamento e o custo de default
A dívida não é algo necessariamente “ruim”. Pelo contrário, o consenso acadêmico descreve um nível ótimo de endividamento – seja na gestão pública ou privada – em que os benefícios da alavancagem superam seus custos. Dessa forma, até mesmo “credores líquidos” (países que dispõem de fundos soberanos cujo valor ultrapassa sua necessidade de financiamento), acessam crédito através da emissão de títulos soberanos.

Entre os diversos motivos legítimos para o endividamento público, podemos citar:

  • o alívio intertemporal da carga tributária (tax smoothing), que permite distribuir os custos de grandes despesas ao longo do tempo, evitando aumentos abruptos de impostos que poderiam gerar distorções econômicas;
  • o financiamento de investimentos produtivos, como infraestrutura, que geram retornos sociais e econômicos no longo prazo;
  • a criação de uma referência local para as taxas de juros, que contribui para o desenvolvimento e a estabilidade do sistema financeiro; e
  • o uso de estímulos fiscais em períodos críticos, atuando como ferramenta de suavização das flutuações do ciclo econômico, sobretudo quando a alternativa monetária é limitada.

Por outro lado, quando a dívida assume níveis insustentáveis, os credores podem sentir-se tentados, ou mesmo forçados, a não cumprir com suas obrigações fiduciárias, ampliando o risco de default, que ocorre quando o governo falha com suas obrigações contratuais de pagamento da dívida – seja por atraso, suspensão ou reestruturação em termos menos favoráveis aos credores. A definição formal pode variar a depender da referência, mas em linhas gerais, podemos assumir que o default é um evento que reduz o valor remunerado aos credores. Segundo especialistas do FMI, esses eventos podem ser categorizados entre técnico, contratual ou substantivo, refletindo diferentes graus de quebra de compromisso.

Fonte: AMS, J. et al. (2018)

O que pode parecer uma saída fácil à primeira vista, na realidade acarreta uma série de custos ao país, como a perda de acesso aos mercados financeiros (doméstico e internacional), que se traduz em aumento dos custos de financiamento, exclusão de índices de referência e rebaixamento de rating. Embora alguns países tenham conseguido retomar o acesso ao mercado anos depois, calotes severos ou prolongados levaram a aumento persistente de prêmio de risco.

Além disso, há de se considerar os danos colaterais à economia, que incluem queda acentuada do PIB, redução do comércio internacional e menor entrada de investimentos estrangeiros, além do efeito negativo sobre o valor de mercado e o acesso ao crédito de empresas domésticas. Entre os mais afetados, destaca-se o setor bancário, que frequentemente detém grandes volumes de títulos públicos e sofre perdas que podem comprometer a estabilidade financeira, levando a crises de crédito e recessões prolongadas.

Por fim, os custos legais — decorrentes de litígios e disputas contratuais — também são significativos. Um exemplo emblemático é o caso dos “holdouts” (credores que se recusam a aceitar ofertas de reestruturação) na Argentina, que enfrentou disputas judiciais por mais de uma década após o calote de 2001. Embora as leis internacionais sobre o mercado de dívida soberana tenham avançado consideravelmente desde então, essas experiências reforçam que o calote tende a ser considerado a última alternativa de um governo, adotada apenas em situações de insolvência incontornável.

Determinantes da sustentabilidade e da solvência
Formalmente, a avaliação da sustentabilidade fiscal parte da condição de não-Ponzi , que estabelece que um governo não pode se financiar indefinidamente por meio da emissão de novas dívidas para pagar as antigas. Em outras palavras, toda a dívida contraída precisa ser paga, ao longo do tempo, com receitas próprias do governo. Isso implica que o valor presente de todas as receitas públicas futuras deve ser igual ou superior ao somatório das despesas futuras e do estoque de dívida existente, corrigido pelo custo de carrego.

A partir dessa lógica, é possível resumir os determinantes da sustentabilidade fiscal em três componentes que regem a dinâmica da dívida pública medida como percentual do PIB:

  • Resultado primário: diferença entre receitas e despesas, excluindo o pagamento de juros da dívida;
  • Custo da dívida: despesa com o pagamento de juros, que varia com o tamanho da dívida e a taxa efetiva sobre os títulos públicos;
  • Crescimento econômico: principal determinante do crescimento passivo da receita tributária e elemento denominador na métrica de risco dívida/PIB.

Fica claro, portanto, que os países nos quais a taxa de crescimento econômico supera a taxa de juros que incide sobre a dívida pública (r-g<0) desfrutam de maior flexibilidade para ajustar sua política fiscal, enquanto no caso oposto, a estabilidade da razão dívida/PIB requer algum grau de esforço fiscal (superavit primário). Esse ponto se tornou particularmente desafiador nos últimos anos, diante da alta das taxas de juros e do nível já elevado de endividamento global.

Por outro lado, a história apresenta alguns exemplos de ajustes de rota bem-sucedidos (sem default) realizados mesmo em contextos de dívida elevada. Um estudo abrangente apresentado por ABBAS, S. M. A. et al. (2011) analisou grandes reduções na relação dívida/PIB em diversos países, decompondo os fatores que contribuíram para esses ajustes. Essa mesma metodologia foi posteriormente utilizada por outros autores, incluindo BEST, T. et al. (2018), de onde foi extraído o gráfico a seguir:

Fonte: BEST, T. et al. (2018)

Em linhas gerais, os autores mostram que não houve uma “bala de prata”, mas sim uma combinação de fatores, colaborando em maior ou menor magnitude, a depender das circunstâncias de cada país e o contexto internacional. De forma geral, nas economias avançadas antes da Primeira Guerra Mundial, as reduções de dívida foram baseadas principalmente em superávits primários, em um ambiente de crescimento modesto e baixa inflação. No período entre guerras, os ajustes “bem-sucedidos” resultaram de combinações de hiperinflação e superávit primário, enquanto, no pós-Segunda Guerra, o recuo da dívida foi predominantemente associado aos diferenciais juros-crescimento negativos, em um contexto de crescimento rápido, repressão financeira e inflação persistente.

Cabe um ponto de atenção: o calote da dívida soberana é quase sempre acionado por uma crise de solvência – isto é, quando o governo não consegue mais crédito suficiente para viabilizar a rolagem da dívida – e não por uma decisão voluntária baseada apenas na perspectiva de insustentabilidade. É claro que isso tende a acontecer quando o mercado antecipa uma crise de sustentabilidade.

Também é possível que ocorram crises de liquidez, causadas por choques temporários (como momentos de maior aversão global ao risco), mas essas situações, em geral, podem ser contornadas através de linhas de crédito cedidas por organizações multilaterais, como o FMI. Em circunstâncias muito menos frequentes, um país pode “repudiar a dívida” (repudiation), alegando não reconhecer sua legitimidade – como fizeram os soviéticos após a Revolução de 1917, que encerrou o regime czarista. No entanto, esse mecanismo é pouquíssimo adotado na atualidade, dados os custos reputacionais e jurídicos envolvidos, especialmente no mercado internacional, onde esse tipo de apelação também não encontra bons precedentes.

Dessa forma, o mais importante é garantir que a trajetória esperada da dívida pública não seja explosiva, permitindo que inflação moderada e crescimento econômico contribuam para reduzir o peso real do endividamento e viabilizem sua rolagem em níveis sustentáveis. Com isso em mente, analisaremos, nos próximos tópicos, as alternativas possíveis para enfrentar os desafios fiscais globais atuais.

A solução pela austeridade e o desafio social
A consolidação fiscal é frequentemente a primeira recomendação para restaurar a confiança e estabilizar a dívida pública. Essa abordagem, alinhada ao espírito do Consenso de Washington , parte da lógica de que cortar gastos e/ou ampliar a arrecadação é o caminho mais seguro para equilibrar as contas públicas. É importante destacar que essa via é discricionária por definição, de forma que melhoras passivas na posição fiscal — decorrentes de fatores macroeconômicos favoráveis, como crescimento acima do esperado ou queda dos juros — não devem ser consideradas. Assim, o esforço de consolidação é usualmente medido pela variação do resultado primário ajustado ao ciclo econômico.

Por outro lado, a execução desse tipo de medida pode ser bem mais complexa do que o discurso sugere. O primeiro desafio diz respeito ao timing, dado que o arrocho fiscal tende a levar a alguma compressão da atividade no curto prazo. Do ponto de vista do risco-país, além da contribuição direta sobre o denominador na razão dívida/PIB, o efeito sobre a atividade econômica também reduz a base tributável e pode acionar outros “estabilizadores automáticos ”, como o aumento da demanda por seguro-desemprego e demais benefícios sociais.

Sob o ângulo social, a retração da atividade se reflete no bem-estar da população e, inevitavelmente, tem impactos políticos. Como o custo do ajuste é imediato e os benefícios só se materializam no médio e longo prazo, o ciclo eleitoral tende a favorecer soluções paliativas. Há ainda desafios técnicos relevantes, como a rigidez orçamentária: despesas obrigatórias — a exemplo do funcionalismo público e dos benefícios previdenciários e assistenciais — frequentemente seguem regras legais complexas, cuja alteração depende de reformas estruturais de difícil aprovação. A previdência social é um dos casos mais emblemáticos, pois o envelhecimento populacional elevou o número de dependentes e reduziu a proporção de contribuintes em quase todo o mundo, pressionando a sustentabilidade do sistema.

Esses desafios são agravados por um cenário socioeconômico global complexo, marcado por elevado custo de vida (evidenciado na dificuldade de acesso ao mercado imobiliário), queda do retorno marginal da educação (com gerações cada vez mais escolarizadas recebendo menos que as anteriores) e pela incerteza quanto à sustentabilidade de políticas sociais (como a própria previdência, que coloca em dúvida o direito à aposentadoria dos mais jovens).

Essa deterioração de expectativas mina a confiança nas instituições e reduz a tolerância a políticas que promovam sacrifícios imediatos em troca de ganhos futuros, criando terreno fértil para o surgimento de lideranças políticas de perfil demagógico.

A erosão do valor das moedas e a repressão financeira
Quando a dívida pública é denominada em moeda própria – como ocorre na maior parte dos casos atualmente – as regras do jogo tornam-se mais flexíveis. Não apenas porque a legislação local não exige os mesmos graus tipo de robustez contratual, permitindo formas alternativas de pagamento da dívida (como mudanças na moeda ou no indexador, por exemplo), mas também porque, em última instância, o governo pode emitir moeda para quitar suas obrigações.

Um breve panorama histórico: o uso da expansão monetária como forma de financiamento do Estado remonta ao período das moedas metálicas, que perdurou até o século XVIII no Ocidente. Há registros ainda no Império Romano (século III a.C.) da redução da pureza das moedas, com a mistura de metais menos valiosos, o que aumentava a oferta monetária ao custo de maior pressão inflacionária. Essa prática, conhecida como erosão das moedas (currency debasement), tornou-se recorrente nos séculos seguintes, chegando a representar uma fonte relevante de receita estatal. Já na era contemporânea, após um período de franca expansão da base monetária durante a Era das Catástrofes (1914 – 1945), o Acordo de Bretton Woods funcionou como um freio temporário ao desgaste das moedas, ao vincular o valor do Dólar ao ouro e das demais moedas ao Dólar. Após o colapso do sistema em 1971, iniciou-se uma nova fase de moedas fiduciárias puras (sem lastro físico), devolvendo aos governos ampla flexibilidade na emissão monetária, agora em um contexto em que o custo e o tempo de emissão caíram drasticamente.

Nota-se que a expansão monetária e a senhoriagem (receita obtida pelo governo ao emitir moeda), não são, por si só, problemáticas, desde que ocorram em níveis moderados e em sintonia com a política monetária, atendendo à demanda por liquidez e ajudando a suavizar flutuações cíclicas na economia. O problema surge quando a emissão passa a ser usada para financiar déficits fiscais, o que historicamente levou a crises hiperinflacionárias, como as observadas na Venezuela e no Zimbábue. Além disso, a surpresa inflacionária exerce efeito redistributivo entre credores e devedores (inclusive o próprio governo), através da deterioração do valor real da dívida.

A crescente demanda por títulos indexados à inflação reduziu o ganho potencial desse tipo de estratégia inflacionária, mas isso não elimina o risco de medidas de repressão financeira, utilizadas para deprimir artificialmente as taxas de juros. Exemplos recentes ocorreram na Argentina (a partir de 2010) e na Turquia (desde 2018), onde as taxas de juros reais ex-post permaneceram negativas por longos períodos. No caso argentino, as próprias estatísticas oficiais de inflação foram manipuladas, subestimando a alta efetiva de preços.

Embora possa funcionar contabilmente no curto prazo, a opção inflacionária (em suas diversas formas) cria distorções distributivas sobre a riqueza e pode corroer a credibilidade se persistente. Além da transferência entre credores e devedores, há uma dinâmica socialmente regressiva: a inflação afeta com maior intensidade os agentes que não dispõem de mecanismos de indexação, que em geral são os mais pobres. Por outro lado, aqueles com mais alternativas tendem a procurar reservas de valor, que podem incluir ativos financeiros denominados em hard currencies (quando o risco é específico de um país) ou ativos reais (como o mercado imobiliário, ações de empresas com bom fluxo de caixa e capacidade de repasse de preços) e commodities (particularmente metais preciosos).

Não é de se estranhar, portanto, que a performance do ouro tenha se destacado nos últimos anos. Outros fatores também podem estar relacionados a esse movimento, como o aumento da demanda de bancos centrais por ouro físico, particularmente após a decisão do governo americano de congelar reservas internacionais da Rússia após a invasão da Ucrânia (2022) e de impor políticas de desglobalização desde o início do ano.

Fonte: Macrobond, Turim

A esperança da produtividade
Como vimos, o crescimento econômico também é uma forma de conter o peso da dívida. No entanto, as políticas usualmente recomendadas nessa direção buscam elevar o produto potencial, por meio de investimentos em infraestrutura, capacitação de recursos humanos e reformas que melhorem o ambiente de negócios. Essas iniciativas, por natureza, geram resultados mais claros apenas no longo prazo, cumprindo assim um papel complementar na discussão fiscal.

No caso de alguns países em desenvolvimento, o baixo grau de capital em infraestrutura básica, como saneamento público e urbanização, ainda oferece oportunidades expressivas de crescimento, grandes o bastante para justificar déficits fiscais recorrentes por períodos prolongados, sem comprometer as métricas de sustentabilidade. É o caso da Índia, que vem apresentando avanços significativos nessa frente nos últimos anos. Essa estratégia, contudo, não é viável para a maioria dos países, sobretudo as economias desenvolvidas, nas quais o potencial de expansão estrutural é mais limitado.

Mas nem tudo está perdido. O prêmio Nobel de Economia deste ano laureou três economistas (Joel Mokyr, Philippe Aghion e Peter Howitt) por suas contribuições para o estudo da inovação como motor de crescimento econômico. A ideia central é que a incorporação de novas tecnologias no setor produtivo abre espaço para formas mais eficientes de produção. Essa corrente de pensamento – cujo principal expoente foi o austríaco Joseph Schumpeter, responsável pela popularização do conceito de “destruição criativa” – atribui a esse fenômeno o crescimento acelerado dos últimos dois séculos, que reduziu a pobreza e elevou o padrão de vida global drasticamente.

Fonte: OpenAI, World Bank, Turim

O tema é extremamente atual, primeiro por sua imediata associação ao crescimento exponencial da inteligência artificial (IA) nos últimos três anos, mas também pois essa pode ser uma “luz no fim do túnel” para as finanças públicas.

As estimativas de impacto potencial da IA sobre a produtividade variam significativamente, desde as projeções mais otimistas que apontam para um impulso de até 7% ao longo da próxima década, até as mais cautelosas, como a visão de Daron Acemoglu — autor de Why Nations Fail e prêmio Nobel de Economia em 2024 — que reconhece um impacto “não trivial, mas modesto”, limitado a 0,71% sobre a produtividade total dos fatores em dez anos, sugerindo ainda que essa estimativa possa superestimar os números.

A sociedade e os mercados
Embora não haja uma solução única aplicável a todos os casos, o caminho mais recomendável parece ser um equilíbrio entre governança fiscal responsável e políticas que fomentem um ambiente propício ao crescimento econômico. Com alguma sorte, ganhos de produtividade poderão contribuir para aliviar o custo da dívida, criando espaço para um ciclo mais saudável de expansão.

Na ponta oposta dos cenários possíveis, poderíamos seguir uma rota cada vez mais insustentável, culminando em um processo de reestruturação ou de “soluções criativas”, que poderiam incluir surpresas inflacionárias e instrumentos de repressão financeira, possivelmente incluindo até políticas de controle da curva de juros (yield curve control), como as implementadas no Japão desde 2016.

No cenário mais otimista, podemos vislumbrar uma janela de crescimento robusto, com pressões inflacionárias moderadas. Esse tipo de crescimento, intensivo em capital e inovação, poderia reforçar a tendência de concentração de riqueza, mas ainda assim seria positivo para a sociedade em termos líquidos, ao elevar a produtividade e o padrão de vida agregado — mesmo com perdas localizadas em setores “destruídos pela inovação” e entre trabalhadores que precisariam ser realocados. Nessas condições, os ativos de risco, especialmente as ações, tendem a se destacar.

No segundo cenário, a confiança nas moedas fiduciárias e nas instituições tradicionais seria abalada, resultando em inflação mais persistente e impondo o risco de uma nova “década perdida”, semelhante à vivida por diversos países latino-americanos a partir das crises de 1980. Mesmo antes de um eventual colapso, investidores tenderiam a exigir prêmios de risco mais altos em ativos tradicionais, como títulos e ações, enquanto reservas de valor alternativas, como metais preciosos e criptoativos, poderiam ganhar participação nas carteiras globais e até nas transações financeiras.

O desfecho dessa história, qualquer que seja, não deve se tornar evidente no curto prazo, tampouco seguir um caminho linear. O mais provável é que o mundo permaneça, por algum tempo, em um status quo de endividamento global desconfortavelmente elevado, com expectativas parcialmente ancoradas e ajustes fiscais oportunísticos, intercalados por períodos de maior aversão ao risco.

Essas alternâncias de narrativa devem seguir gerando volatilidade nos preços de ativos, reforçando a importância da diversificação e da disciplina de longo prazo.

Referências

  • ABBAS, S. M. A. et al. Historical Patterns and Dynamics of Public Debt — Evidence from a New Database. IMF. May, 2011.
  • ACEMOGLU, D. The Simple Macroeconomics of AI. MIT; Massachusetts. Apr, 2024.
  • AMS, J. et al. Sovereign Default. Washington, DC: IMF. Set, 2018.
  • BEST, T. et al. Reducing Debt, Short of Default. Washington, DC: IMF. Set, 2018.
  • EICHENGREEN, B. et al. Public Debt Through the Ages. Washington, DC: IMF. Set, 2018.
  • POSEN, A. Geopolitics Is Corroding Globalization. Washington, DC: IMF. Jun, 2024.
  • GOLDMAN SACHS. “Generative AI could raise global GDP by 7%” Apr, 2023.

2. O que o Japão nos ensina sobre longevidade?

O Japão vive hoje um fenômeno que une ciência, cultura e filosofia. Em 2025, o país atingiu um novo recorde de longevidade, com quase 100 mil pessoas com 100 anos ou mais. É o 55º ano consecutivo em que esse número cresce. Mais do que uma estatística, trata-se de uma expressão de algo mais profundo: uma sociedade que aprendeu a conviver com o tempo, e não apenas a resistir a ele.

O envelhecimento da população japonesa costuma ser visto como um desafio econômico, mas, por trás dos números, existe uma forma de viver. A vida longa no Japão não é apenas resultado da genética ou da medicina moderna, mas de uma cultura que valoriza a harmonia, a consistência e a presença. Há séculos, o país cultiva uma relação quase reverencial com o tempo.

Parte desse resultado é fruto de escolhas feitas há mais de meio século. Após a Segunda Guerra, o Japão reconstruiu não apenas sua economia, mas também seus hábitos. O governo implementou políticas de saúde pública, nutrição e cobertura universal — especialmente com foco em melhorar o bem-estar em todas as regiões. O período conhecido como milagre econômico japonês (1955–1973) foi acompanhado por expressivo investimento em educação, infraestrutura de saúde e programas de alimentação escolar. A aprovação da Lei do Seguro de Saúde Universal (1961) garantiu acesso amplo à saúde e contribuiu para o aumento da expectativa de vida. A partir da década de 1960, programas de nutrição escolar e outras iniciativas de promoção da saúde passaram a integrar o cotidiano, contribuindo para uma geração que cresceu com maior consciência de seu bem-estar.

 

O propósito como eixo da vida

Essa visão se traduz no conceito de ikigai, palavra que, em tradução livre, significa “razão de ser”. Iki quer dizer “vida”, e gai pode ser entendido como “valor” ou “propósito”. O termo expressa o que motiva uma pessoa a levantar todos os dias: o propósito que conecta o individual ao coletivo.

No livro Ikigai: The Japanese Secret to a Long and Happy Life, os autores Héctor García e Francesc Miralles descrevem o ikigai como o ponto de encontro entre o que amamos, o que sabemos fazer bem, o que o mundo precisa e o que pode nos sustentar. O ikigai não se revela em grandes gestos, mas nas pequenas repetições de uma vida coerente.

Em Okinawa, uma província localizada mais ao sul do arquipélago japonês e nomeada uma Blue Zone (áreas conhecidas por maior longevidade e qualidade de vida), esse modo de viver está especialmente presente. Ali, o número de centenários por habitante é o maior do planeta, e os estudiosos apontam quatro pilares comuns que explicam esse fenômeno: alimentação equilibrada, movimento constante, laços sociais sólidos e propósito de vida.

No Japão, essas práticas têm nomes e histórias: o hara hachi bu (comer com moderação), o ikigai (propósito), o moai (rede de apoio) e o nuchi gusui, expressão de Okinawa que significa “comida como remédio”. Juntas, elas traduzem a filosofia de uma vida longa e plena.

A dieta tradicional de Okinawa é rica em vegetais, tofu e peixe, com consumo moderado de arroz e pouquíssimos alimentos processados. Os moradores comem devagar e param antes de se sentirem completamente saciados, seguindo a prática do hara hachi bu, o costume de comer até 80% da saciedade. Essa moderação reduz o estresse metabólico e a oxidação celular, promovendo longevidade.

Essa filosofia alimentar também se reflete no washoku — o conjunto de práticas culinárias tradicionais japonesas reconhecidas pela UNESCO como patrimônio cultural imaterial, por expressar o equilíbrio entre sabor, estética e nutrição.

A atividade física também é parte da vida, mas de maneira natural. Caminhar, cultivar hortas e cuidar da casa mantêm corpo e mente em movimento, sem excessos. Em Okinawa, quase ninguém “se exercita” no sentido ocidental, mas todos se movimentam o tempo todo. Subir escadas, cuidar do jardim, ajoelhar-se no tatame e caminhar até o mercado são gestos cotidianos que mantêm articulações e músculos ativos por décadas. Essa movimentação leve e constante melhora a função cardiovascular, reduz inflamações e preserva os telômeros — estruturas que protegem o DNA e estão diretamente ligadas ao envelhecimento celular. Como escreveu Haruki Murakami em What I Talk About When I Talk About Running, a constância silenciosa de uma rotina — seja correr, caminhar ou simplesmente repetir gestos com atenção — é o que permite que o tempo trabalhe a favor do corpo, e não contra ele.

Outro elemento essencial é o moai, grupos de amizade e apoio mútuo que atravessam gerações. Essas redes de convivência são uma forma de amparo emocional e financeiro. Estudos mostram que vínculos sociais fortes reduzem o risco de doenças cardíacas, depressão e declínio cognitivo. Esses laços sociais são estudados há décadas pelo Okinawa Centenarian Study, iniciado em 1975, que identificou o moai como um dos principais fatores de longevidade social e emocional. No Japão, a coesão social e intrageracional é um pilar invisível da saúde.

Por fim, o propósito é o fio que conecta todos esses elementos. Ter um ikigai não apenas traz sentido à vida, mas também alivia o estresse e regula os sistemas biológicos associados à longevidade. A ciência já sabe que níveis mais baixos de cortisol e melhor regulação hormonal estão diretamente ligados à sensação de propósito e pertencimento.

Esse senso de propósito coletivo também reflete valores herdados do confucionismo e reforçados no pós-guerra, quando o país precisou reconstruir sua identidade. O trabalho disciplinado, o cuidado com o outro e o respeito ao tempo tornaram-se pilares de uma cultura que enxerga a longevidade não como acaso, mas como consequência da coerência entre indivíduo e comunidade.

 

O corpo, o cérebro e o tempo

As Blue Zones nos mostram que esses hábitos não apenas prolongam a vida, mas também preservam a saúde mental. O envelhecimento saudável está associado a um estado de baixo estresse e alta curiosidade intelectual: pessoas que continuam aprendendo, criando e se desafiando mentalmente apresentam menor risco de declínio cognitivo e maior manutenção da plasticidade neural ao longo da vida.

O neurocientista Andrew Huberman, professor da Universidade Stanford, descreve esse equilíbrio como “neuroplasticidade dirigida” — a capacidade do cérebro de continuar aprendendo e se adaptando quando exposto a pequenas doses de desafio físico ou intelectual, seguidas por períodos de recuperação e descanso. Segundo Huberman, a longevidade mental não depende de eliminar o estresse, mas de modulá-lo conscientemente: caminhar, dormir bem, se expor à luz natural e manter conexões sociais são, para ele, comportamentos neurobiológicos que sustentam a vitalidade e o equilíbrio emocional.

A ciência moderna vem, pouco a pouco, confirmando o que a cultura japonesa parece intuir há séculos: o envelhecimento não é apenas a passagem do tempo, mas a forma como o corpo responde a ele — um diálogo constante entre biologia e ambiente.

O chamado “relógio biológico” (epigenetic clock) mede o ritmo do envelhecimento a partir de marcas químicas no DNA, especialmente padrões de metilação, que regulam quais genes são ativados ou silenciados ao longo da vida. Quando essas marcas indicam uma idade inferior à cronológica, diz-se que a idade epigenética indica uma pessoa biologicamente mais jovem.

Estudos com supercentenários japoneses apontam que muitos apresentam uma idade epigenética até dez anos menor do que a cronológica, evidenciando que fatores como alimentação equilibrada, sono regular, convivência social e propósito podem literalmente modular a expressão genética, retardando o envelhecimento celular e reduzindo o risco de doenças relacionadas à idade.

Esses princípios se refletem no cotidiano das comunidades longevas do Japão. Em vez de buscar equilíbrio através de interrupções radicais, os japoneses o encontram na constância dos rituais, na harmonia das rotinas — como nas cerimônias do chá, que podem durar de 30 minutos a até 4 horas e cujo propósito não é a bebida em si, mas o gesto, a atenção e a quietude. A vida ativa, mas sem pressa, é uma forma de treinar corpo e mente para a permanência.

 

A travessia de Hakone, um relato pessoal

A filosofia japonesa da longevidade também se revela nas pequenas experiências cotidianas. Para ilustrar essa relação entre tempo, propósito e legado, compartilho a seguir um relato pessoal, vivido recentemente no Japão por esta redatora, durante uma caminhada por um trecho histórico da antiga Tōkaidō Road.

Essa estrada histórica do país que significa literalmente “Caminho do Mar do Leste”, foi uma das cinco rotas oficiais do período Edo (1603–1868). Ela conectava Kyoto, a capital imperial, a Edo — então centro político do país, sob o comando do shōgun, líder militar hereditário que detinha o poder real enquanto o imperador ocupava um papel sobretudo simbólico — e a atual Tóquio. Com mais de 500 km e 53 estações, ela era percorrida por samurais, monges, mercadores e artistas. Mais do que um trajeto, tornou-se símbolo de travessia e contemplação, eternizado nas gravuras de Utagawa Hiroshige.

Inspirada pelo escritor e fotógrafo Craig Mod, autor que vive no Japão e reflete sobre o ato de caminhar como forma de meditação e narrativa, decidi percorrer um trecho da antiga estrada em Hakone, uma região montanhosa famosa pelas águas termais. Ali, existiam, há séculos, pequenas casas de chá onde os viajantes paravam para descansar. Hoje, resta apenas uma: a Amasake Chaya.

Fundada há 400 anos atras, a casa é conduzida pela mesma família há mais de 13 gerações e serve o amasake, uma bebida feita de arroz, levemente doce e não alcoólica, usada para aquecer e revitalizar o corpo. Cheguei ao local após uma longa caminhada e fui recebida pelo mestre de chá, um homem sereno e curioso.

Ele contou que jamais fora obrigado a continuar o negócio da família. Seu pai o deixara livre para escolher, mas, com o tempo, ele próprio quis “tirar o peso dos ombros do pai” e seguir o legado. Quando perguntei se algum dos quatro filhos deseja assumir (pergunta que fiz com certo receio de parecer indelicada), ele respondeu que não sabia, mas esperava que, um dia, algum deles sentisse o mesmo chamado, embora todos estivessem na faculdade estudando outras áreas.

Ele agradeceu pela pergunta e pela preocupação com a continuidade do negócio. Disse que seus avós e bisavós ficariam honrados em saber que brasileiros, do outro lado do mundo, vieram visitá-los. Contou ainda que, por muitos anos, sua família debateu fechar a casa de chá, especialmente após a construção das ferrovias que reduziu o fluxo de viajantes a pé pela antiga estrada. No entanto, por um motivo que descreveu como “maior do que nós”, decidiram manter as portas abertas — como se preservar aquele espaço fosse, também, uma forma de honrar o tempo.

Tōkaidō Road e Amasake Chaya (acervo pessoal – Hakone, Japão)

 

A conversa, simples e delicada, trouxe um ensinamento sobre o próprio sentido de longevidade. A continuidade não é imposta e sim escolhida. O legado é tratado como expressão de identidade, não como obrigação.

Hoje, a estrada é símbolo de permanência — uma lembrança de que, no Japão, tradição e modernidade coexistem lado a lado.

Poucos quilômetros adiante, outra história reforçou a mesma ideia de continuidade silenciosa. Em uma oficina de marchetaria tradicional — arte de incrustar finas lâminas de madeira para formar padrões geométricos — conheci um artesão que representa a 9ª geração de sua família no ofício. A técnica, conhecida como yosegi-zaiku, surgiu em Hakone ainda no período Edo, aproveitando a grande variedade de madeiras nativas da região e transformando o trabalho com madeira em uma expressão de paciência e precisão.

Artesão da 9ª geração de yosegi-zaiku (acervo pessoal – Hakone, Japão)

 

Ele contou que aprendeu o ofício ainda criança, observando o pai e o avô, e que, em cada peça, carrega uma técnica transmitida quase como um ritual. Disse que, em sua família, ninguém é forçado a continuar — mas, de algum modo, todos acabam retornando à madeira. “É como se o trabalho chamasse de volta”, explicou. O gesto paciente de montar cada fragmento (às vezes por dias) parecia um espelho do tempo: uma arte que se revela na soma de pequenas continuidades.

 

A beleza do que envelhece

Após a experiência em Hakone ficou mais claro o princípio que sustenta a longevidade japonesa: coerência entre corpo, mente e comunidade. Nada ali parece desconectado.

Durante a viagem, chamou atenção como os japoneses comem: em vários pequenos pratos, cada item preparado com cuidado. No início, a abundância de louça parecia um exagero, mas a lógica atrás desse hábito logo se revelou — porções menores ajudam a evitar excessos, e a variedade estimula equilíbrio nutricional. Comer no Japão é um ato consciente: parar antes de passar do limite, prestar atenção ao sabor e ao ritmo da refeição. Essa disciplina tranquila se reflete em outras dimensões da vida.

Também foi percebido como o senso de coletividade atravessa as gerações — vizinhos cuidam uns dos outros, e os idosos permanecem integrados à vida comunitária. No Japão, o envelhecimento é tratado com naturalidade. Idosos continuam participando da comunidade e são valorizados pela experiência acumulada. Esse olhar se conecta ao conceito de wabi-sabi, que reconhece beleza na imperfeição e no envelhecer. A serenidade de aceitar o que passa.

 

O legado que se renova

Ao refletir sobre essa filosofia, a Turim vê nela um espelho do modo como entende o tempo e a continuidade.

Assim como o mestre de chá de Hakone, que preserva sua casa por sentido e não por obrigação, famílias e instituições enfrentam o mesmo desafio: equilibrar tradição e reinvenção, permanência e movimento.

O Japão construiu ao longo do tempo uma cultura de continuidade. Famílias e empresas, muitas com séculos de história, valorizam a permanência e a transmissão de conhecimento. Essa visão de longo prazo, que privilegia a solidez em vez do ganho imediato, se alinha ao modo como a Turim enxerga a gestão patrimonial: um processo que atravessa gerações e se sustenta em valores.

A verdadeira herança não está nas estruturas que se mantêm, mas no significado que se transmite. O ikigai ensina que cada geração deve encontrar o seu próprio propósito, sem romper o elo com o que veio antes. É nesse equilíbrio — entre o que herdamos e o que criamos — que o tempo se transforma em legado.

O Japão recorda que longevidade não é apenas o prolongamento da vida, mas a arte de vivê-la com consistência. Viver muito é um dado biológico; viver bem é uma decisão diária.

Ao caminhar pela Tōkaidō Road e ouvir o som do vento entre as árvores de Hakone, ficou a sensação de que o segredo japonês não está em viver mais, e sim em viver com sentido.

Em um mundo que busca otimizar rotinas, talvez a verdadeira inovação esteja em desacelerá-lo. Que possamos, como o Japão, aprender a cultivar o propósito e honrar o tempo.

O que o Japão nos ensina sobre longevidade é, no fundo, um conjunto de princípios (além dos já citados anteriormente) que transcendem a biologia e se tornam filosofia de vida:

  • Kaizen: melhorar um pouco a cada dia. Mostrar-se presente, evoluir, repetir. O progresso não está na pressa, mas na constância.
  • Shoshin: cultivar a mente do aprendiz. Manter-se curioso, aberto e humilde diante do novo é o que nos mantém em movimento.
  • Wabi-sabi: aceitar a imperfeição. As marcas do tempo não diminuem o valor das coisas; revelam sua história e autenticidade.
  • Gaman: perseverar com dignidade. Enfrentar as adversidades com paciência e serenidade é, talvez, a forma mais silenciosa de sabedoria.
  • Arigatai: praticar a gratidão. Não apenas pelo que é bom, mas pelo que é raro, transitório ou imperfeito. É um elo natural entre o wabi-sabi (a aceitação da imperfeição) e o ikigai (o propósito), pois valoriza o instante e reconhece o tempo como presente.

Juntos, esses princípios nos mostram por que longevidade não é permanecer. É continuar, com significado.

 

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A partir desta edição, dedicaremos o segundo tema das nossas Cartas Semestrais à longevidade — um conceito intrinsecamente ligado ao nosso propósito de perpetuar patrimônios e legados.

Mais do que uma questão biológica, ela nos convida a refletir sobre o tempo, o propósito e a continuidade, princípios que também orientam a forma como cuidamos de histórias e famílias na Turim.

 

Para quem quiser aprofundar esse diálogo, sugerimos ouvir o podcast Valores no Tempo, disponível nas principais plataformas de áudio, onde dedicamos um episódio de cada temporada à longevidade e seus desdobramentos sob diferentes perspectivas.

 

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