No dia 02 de abril (apelidado de “Liberation Day” pelo presidente Donald Trump), foram anunciadas as “tarifas recíprocas”, que podem contribuir para elevar a alíquota efetiva sobre as importações americanas para o maior patamar em mais de 100 anos. Mesmo antes de sua aplicação, a proposta para aumento tão expressivo das barreiras alfandegárias já reacende o debate sobre os motivos pelos quais esse tipo de política perdeu protagonismo no passado — e porque retorna com força no cenário atual.
Fonte: Tax Foundation, Turim
Uma breve história do comércio internacional
Até o século XVIII, o comércio internacional era concebido como uma competição por recursos (notadamente metais preciosos), seguindo os princípios do mercantilismo. Por esta razão, as políticas econômicas implementadas pelos estados nacionais eram altamente protecionistas: tarifas elevadas sobre bens importados, subsídios para manufatura e exportação e leis que favoreciam a formação e manutenção de monopólios.
As origens do pensamento econômico moderno sobre o comércio internacional surgem apenas no final do século, a partir estudos de Adam Smith (1776), que defendia a especialização e a produtividade como as verdadeiras fontes de riqueza das nações. Nos anos subsequentes, David Ricardo (1817) formalizou essas ideias através da teoria das vantagens comparativas, que mostrava como o livre-comércio permite ganhos de produtividade ao direcionar os recursos produtivos de cada país para as atividades em que são mais eficientes.
Apesar do avanço da teoria econômica sobre o tema, o uso disseminado de barreiras comerciais seguiu em presente ao longo dos anos. O Império Britânico instituiu as Corn Laws no século XIX para proteger seus agricultores, enquanto os Estados Unidos e a Alemanha impuseram diversas tarifas [1] para proteger suas indústrias. Apenas na década de 1930, após a adoção do Smoot-Hawley Tariff Act, que impôs tarifas sobre mais de 20 mil bens, elevando a alíquota efetiva das tarifas sobre importações de 13,5% para 20% (reconhecido como um agravante da Grande Depressão), os efeitos negativos desse tipo de medida ficaram evidentes.
Após a Segunda Guerra Mundial, os EUA emergem como a principal liderança entre as democracias capitalistas em um mundo devastado, alterando radicalmente as diretrizes da política externa. O foco passa a ser a cooperação internacional como um meio de promover a estabilidade econômica e a paz entre as nações (“Pax Americana”). Para tanto, foram firmados pactos, como o sistema de Bretton Woods (1944) [2] e o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (1947) [3].
Embora medidas protecionistas permaneçam presentes, o foco se reverte para políticas não alfandegárias (como cotas, subsídios e sanções comerciais), salvo casos específicos. O período também é marcado pelo surgimento de acordos comerciais regionais como o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio – NAFTA (1994) [4], a União Europeia (1993) e o Mercado Comum do Sul – Mercosul (1991).
O “consenso acadêmico” sobre comércio e tarifas
A corrente dominante no pensamento econômico moderno defende que o livre-comércio tende a ser benéfico para todos os países envolvidos, especialmente os menos produtivos, ao permitir que cada nação possa (i) focar na produção daquilo que faz relativamente bem — ou seja, possui vantagens comparativas — e (ii) obter ganhos de escala ao ampliar a produção em determinadas atividades. Ao concentrar seus recursos nas áreas mais eficientes, cada país consegue produzir mais valor do que se tentasse fabricar internamente tudo o que consome, utilizando esse excedente para financiar a importação de bens (geralmente mais baratos) no mercado internacional. Isso tende a ampliar o bem-estar global e o desempenho individual de cada economia.
“Trade isn't about winning and losing: it generally makes both sides of the deal richer” - Paul Krugman em Pop Internationalism (1996)
Contudo, a hipótese de que o comércio beneficia os países como um todo não significa que todos os indivíduos se beneficiam. Pelo contrário, a liberalização comercial quase sempre gera vencedores e perdedores, deslocando renda de setores menos competitivos para os mais eficientes.
Esses efeitos atingem mais fortemente os fatores de produção com menor mobilidade (que tem dificuldade em migrar dos setores perdedores para os vencedores), o que implica em efeitos adversos para alguns detentores de capital e uma parcela da força de trabalho. Além disso, alterações na matriz produtiva também podem afetar a demanda por insumos em outros setores, gerando efeitos em cadeia.
Apesar dos efeitos adversos, a ampla maioria dos trabalhos científicos se apresenta favorável à abertura comercial como uma alternativa com mais benefícios do que malefícios. Em grande parte, porque os ganhos agregados costumam ser suficientes para compensar os eventuais custos da implementação de medidas de suporte às pessoas prejudicadas pelo comércio, como seguro-desemprego e programas subsidiados de requalificação e realocação.
Vale mencionar que esse tipo de efeito adverso não é algo inerente apenas ao comércio internacional. Fatores como avanço tecnológico, mudanças de padrão de consumo e esgotamento de recursos também podem provocar efeitos semelhantes.
Em contrapartida, as tarifas sobre importações são a forma mais antiga de política comercial e foram utilizadas historicamente como uma forma de proteger produtores domésticos e ampliar a receita governamental. Esse tipo de medida tende a reduzir a diferença entre os preços de equilíbrio nos mercados interno e externo, elevando os preços no mercado doméstico enquanto reduz os preços no mercado global, mas esses efeitos dependem de uma série de premissas, gerando grande incerteza ex-ante.
Do ponto de vista do país que aplica a taxação, a alta de preços favorece os produtores ao custo do bem-estar dos consumidores. Ao mesmo tempo, a taxação sobre a parcela de bens importados gera aumento de receita tributária, favorecendo também o governo. Já pela ótica do exportador, as tarifas atuam de forma semelhante a uma elevação do custo de transporte, potencialmente reduzindo a demanda no mercado internacional (quando a participação relativa do país no comércio global é suficientemente relevante), levando a uma redução nos preços, conforme apresentado no gráfico abaixo. Caso os preços no mercado internacional realmente caiam, parte da piora da situação dos consumidores no país taxador é mitigada pela queda na receita dos exportadores.
Fonte: International Economics Theory & Policy (2012)
Além dos efeitos diretos mencionados, esse tipo de medida também pode levar a uma série de externalidades negativas, como retaliações de parceiros comerciais (através da imposição de novas tarifas, por exemplo), formação de lobbies (que podem levar políticas temporárias a se tornarem permanentes) e a criação distorções alocativas (usualmente empregadas pelos agentes como formas de minimizar o impacto das taxações).
Vale ressaltar que a taxação indiscriminada de bens importados pode afetar, além dos preços de bens finais consumidos em um país, também os insumos importados utilizados em bens produzidos internamente. Esse ponto pode ser especialmente adverso para economias intensivas em produtos de maior valor agregado, tipicamente associados às etapas finais das cadeias produtivas. Nesse caso, a alta dos preços de insumos pode (supondo algum grau de repasse de custos) elevar os preços de bens exportados pelo país, piorando sua competividade no mercado internacional e, portanto, reduzindo potencialmente suas exportações.
Diante de tudo, a academia tende a defender o uso desse tipo de política em situações específicas e usualmente de forma temporária, como forma de combater políticas de competição desleal aplicadas por outras nações ou para lidar com fatores de natureza menos “econômica”, como segurança e soberania nacional, por exemplo.
Potenciais efeitos do Liberation Day
Alegando que os persistentes déficits comerciais bilaterais dos Estados Unidos seriam resultado de “uma combinação de fatores tarifários e não tarifários que impedem o equilíbrio do comércio”, o presidente recorreu à Lei de Poderes Econômicos de Emergência Internacional de 1977 (IEEPA) para impor (I) uma tarifa mínima de 10% sobre todas as importações e (II) “tarifas recíprocas” mais elevadas aos países com os quais os Estados Unidos têm os maiores déficits comerciais, excluindo-se produtos – em geral, associados à outras medidas tarifárias – como artigos sujeitos à Seção 50 USC 1702(b); aço/alumínio e automóveis/peças de automóveis, sujeitos às tarifas da Seção 232; artigos de cobre, produtos farmacêuticos, semicondutores e madeira serrada; metais preciosos; energia e outros minerais específicos que não estão disponíveis nos Estados Unidos e quaisquer outros artigos que possam se tornar sujeitos às tarifas futuras da Seção 232.
Segundo documentos apresentados posteriormente pelo Office of the United States Trade Representative – USTR, as alíquotas individualizadas foram estimadas de forma a reduzir pela metade os déficits bilaterais dos Estados Unidos com cada um dos seus parceiros comerciais. A equação apresentada descreve que o choque tarifário (isto é, a variação da alíquota) que levaria ao equilíbrio das balanças comerciais bilaterais se daria pela razão entre as exportações líquidas (total das exportações em 2024 subtraídas das importações no mesmo período) e o total de importações dos EUA vindas do país, levando em consideração as elasticidades das importações com relação aos preços (ε = 4) e o repasse da alíquota tarifária para os preços dos bens importados (φ = 0,25). Chama atenção que o resultado líquido dessas duas estimativas exerça efeito neutro na equação (4 x 0,25 = 1), levando o resultado a refletir apenas o déficit bilateral como proporção das importações de cada país.
Fonte: The White House, Census Bureau, Turim
Se assumirmos a estabilidade na composição dos parceiros comerciais no total de importações dos EUA com base nos dados de 2024, o impacto estimado sobre a tarifa efetiva após o anúncio do dia 02 de abril seria de aproximadamente 25,3 pontos percentuais (desconsiderando exclusões). Essa estimativa, no entanto, pode variar a depender da elasticidade da demanda dos consumidores em relação à variação dos preços dos bens importados, afetando principalmente os exportadores atingidos pelas maiores alíquotas.
A China é o exemplo mais marcante. Sua tarifa subiu dos 34% anunciados no dia 2 para 145%, após responder com medidas retaliatórias. Já para os demais países, as tarifas acima de 10% foram temporariamente suspensas, devido a “avanços nas negociações” — curiosamente, em meio a uma forte deterioração do mercado financeiro.
Se mantida a hipótese de elasticidade neutra para o cenário atual, o impacto sobre a tarifa média subiria para cerca de 29,5%, no entanto, é ponto pacífico que os níveis das alíquotas impostas pelos dois países tornam praticamente inviável qualquer relação comercial direta entre as partes, o que resultaria em uma taxa de apenas 10%, após a retirada das importações vindas da China. Ainda assim, a substituição das importações chinesas, seja por produção interna ou por importações de outros países, ainda resultaria em alguma pressão inflacionária.
Além disso, a pressão sobre os preços de bens importados pode ser ainda maior se considerarmos o movimento recente do Dólar, que (contrariando as hipóteses dos modelos tradicionais, como vimos na seção anterior) registrou depreciação expressiva desde o anúncio das novas tarifas.
Fonte: Federal Reserve, Turim
A desvalorização pode ter sido agravada pelo ponto de partida inicial elevado (leia-se “caro”) da moeda — cerca de dois desvios-padrão acima da média histórica dos últimos 60 anos em termos reais efetivos. Entretanto, a depreciação particularmente intensa na comparação com outras reservas de valor (hard currencies) vis-à-vis moedas de economias emergentes reforça a narrativa de que investidores podem estar buscando alternativas ao mercado dos EUA.
Quaisquer que sejam as razões por trás do movimento, seu impacto prático é claro: importações ficam ainda mais caras, pressionando a inflação e reduzindo o poder de compra dos consumidores, o que por sua vez também amplia os riscos negativos para o crescimento econômico.
Embora membros do governo americano tenham sinalizado que as tarifas podem cair após negociações, a imprevisibilidade das políticas adotadas até aqui já impõe custos. O aumento da incerteza em relação ao ciclo econômico leva empresas e consumidores a adiarem decisões de investimento e consumo (especialmente de bens duráveis), assim como a volatilidade do mercado afeta as condições financeiras, que por sua vez atingem a economia real.
Fonte: Conference Board, Turim
Motivos de Trump e o risco para hegemonia do Dólar
Entre discursos e publicações, o presidente e sua equipe vêm enfatizando alguns pontos que podem ser entendidos como objetivos das políticas tarifárias incluindo (i) reduzir os déficits na balança de pagamentos e (ii) nas contas públicas, (iii) atrair investimentos para ampliar a produção industrial nos EUA e (iv) ampliar o poder de barganha em negociações internacionais.
Trump parece interpretar o déficit comercial como uma transferência de renda dos Estados Unidos para outros países, embora isso tenha impulsionado o poder de compra dos consumidores americanos por décadas. Acima disso, a demanda global por dólares permaneceu praticamente ilimitada, a despeito dos déficits persistentes em conta corrente e nas contas públicas. Essa capacidade de se financiar a baixo custo em moeda própria (exclusiva dos Estados Unidos na escala observada) ficou conhecida como “privilégio exorbitante”. [5]
Barry Eichengreen discorre sobre esse fenômeno em seu livro de mesmo nome. Segundo ele, a ascensão do Dólar começa a partir do final da Primeira Guerra Mundial e se consolida após a Segunda Guerra, por meio do sistema de Bretton Woods. Dessa forma, os Estados Unidos se tornaram desproporcionalmente influentes — não apenas no comércio internacional, mas também na geopolítica. O autor argumenta que a resiliência da moeda como principal reserva de valor do mundo se explica pela liquidez do mercado financeiro americano, a confiança institucional e a ausência de alternativas viáveis
Sob esse ponto de vista, combater o déficit comercial (restringindo a oferta de dólares ao resto do mundo) e desestabilizar acordos internacionais (arriscando a credibilidade institucional dos EUA) pode ser equivalente a renunciar a esse privilégio. Nesse caso, os desequilíbrios nas contas externas e públicas passariam a exercer efeitos adversos mais intensos. Também seria natural observar um aumento dos prêmios de risco embutidos em ativos financeiros americanos, o que conversa com a performance relativa recente de diversos ativos desde o Liberation Day, ainda que flutuações de preços possam ser erráticas no curto prazo.
Fonte: Bloomberg, Turim
Por outro lado, em artigo publicado no final do ano passado, Stephen Miran, presidente do Conselho de Consultores Econômicos da Casa Branca, argumenta que o privilégio exorbitante vem acompanhado de custos, particularmente através da apreciação cambial. Nesse sentido, o “guarda-chuva” de segurança global (papel de “polícia mundial” exercido pelos EUA) e o fornecimento da moeda de reserva global (que facilitaria o comércio internacional entre países) podem ser interpretados como bens públicos subsidiados pelos EUA, que deveriam ter uma compensação. Nesse caso, essa compensação poderia ser coletada através de tarifas sobre as importações, investimentos estrangeiros em fábricas nos EUA, abertura de mercados para produtos americanos e aumento de gastos domésticos em defesa. De forma análoga, a depreciação cambial também poderia vir através de ações coordenadas semelhantes ao Acordo de Plaza [6] (“Mar-a-Lago Accord”).
Um ponto importante dessa linha de argumentação é que potenciais perdas causadas pelas políticas poderiam ser justificadas pela proteção de setores estratégicos. Isso porque perder capacidade industrial e ter cadeias de suprimento mais espalhadas pelo mundo aumentaria a dependência de fornecedores externos de insumos importantes para áreas como saúde pública (incluindo componentes químicos para produção de remédios) e segurança nacional (produção de armamentos, por exemplo).
A elevada incerteza associada a forma pela qual as novas políticas vêm sendo implementadas parece pouco favorável à atração de investimento privado para a indústria local, pelo menos no curto prazo. Entretanto, se bem-sucedida, a ampliação da indústria em setores de menor valor agregado (contrariando a tendência observada ao longo das últimas décadas) deve criar empregos com menor nível de qualificação e salários mais baixos, em detrimentos de segmentos mais competitivos da matriz produtiva.
Fonte: NBER, U.S. Department of Treasury, Turim
No fim das contas, o cenário atual levanta mais dúvidas do que convicções. Essa elevada incerteza se traduz em alta volatilidade no curto prazo, mas também permite o vislumbre de possíveis mudanças estruturais ao longo dos próximos anos. O risco de uma redução do diferencial de crescimento dos EUA frente às demais economias desenvolvidas (“excepcionalismo americano”) em função das políticas de isolamento assumidas pelos EUA reforça a importância da diversificação geográfica de portfólios globais, embora esse tipo de movimento deva ser feito de forma gradual e cautelosa, a fim de evitar que a volatilidade de curto prazo se traduza em perdas permanentes.
Referências
- Exemplos: Dallas Tariff (1816), Tariff of Abominations (1828), Morrill Tariff (1861) e McKinley Tariff (1890).
- A conferência estabeleceu o padrão ouro e criou o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial.
- O GATT estabeleceu as normas para o comércio até ser substituído pela OMC em 1995.
- Substituído em 2020 pelo Acordo Estados Unidos-México-Canadá (USMCA) após negociações durante o primeiro mandato de Donald Trump.
- Termo cunhado pelo, então ministro de finanças da França, Valéry Giscard d’Estaing na década de 1960.
- Acordo internacional para depreciar o Dólar e reduzir o déficit comercial dos EUA em 1985.
Bibiliografia
- EICHENGREEN, Barry. Exorbitant Privilege: The Rise and Fall of the Dollar and the Future of the International Monetary System. Oxford University Press, 2010.
- MELITZ, Marc; OBSTFELD, Maurice; KRUGMAN, Paul. International Economics: Theory & Policy. Ninth Edition. Pearson, 2012.
- MIRAN, Stephen. A User’s Guide to Restructuring the Global Trading System. Hudson Bay Capital Management, 2024.
- THE WHITE HOUSE. “Fact Sheet: President Donald J. Trump Declares National Emergency to Increase our Competitive Edge, Protect our Sovereignty, and Strengthen our National and Economic Security”. Washington, 2 abr. 2025.
- UNITED STATES TRADE REPRESENTATIVE (USTR). “Reciprocal Tariff Calculations”.